Nos últimos anos, estudei muito
sobre terrorismo. Esse assunto domina meus estudos, minhas leituras e minhas
dúvidas. Minha monografia de conclusão do curso de Direito, na Universidade
Federal do Paraná, foi sobre o possível reconhecimento dos grupos terroristas
como sujeitos de Direito Internacional Público. Fui durante 04 anos da
faculdade monitor da matéria e acreditava, com um pouco de romantismo juvenil,
que uma possível solução para o terrorismo era o estabelecimento de um canal de
diálogo internacional a partir do qual grupos oprimidos e insatisfeitos com
algo poderiam apresentar suas reivindicações e discutir soluções para seus
anseios. Cheguei a escrever e publicar, inspirado por Noam Chomsky, um artigo
científico sobre a opressão mundial de minorias e grupos excluídos a partir do
discurso do medo do terrorismo. Também estudei sobre os interesses econômicos
que movimentam a máquina de guerra contra o terror.
Mas minhas pesquisas não se
encerraram aí e hoje tenho posições mais evoluídas do que o simples e puro
discurso denúncia, romântico e acadêmico, mas impossível de se manter e se
confirmar quando cotejado com a realidade. Tornei-me policial, com especial
interesse no policiamento internacional e operações de manutenção de paz, cursei
diversos cursos de contraterrorismo e peacekeeping,
fui conhecer Israel, seu treinamento e seu dia a dia, conheci a Palestina,
ainda visitarei outros lugares instáveis do mundo.
Venho dividir meus anseios e
dúvidas, venho refletir sobre uma visão que parece ter ficado escondida quando
se discutiu a morte do terrorista Osama Bin Laden. É isso que passo a fazer
agora.
Hoje, em relação a este tema, tenho
três certezas e muitas dúvidas. A primeira certeza é de que na “guerra contra o
terror” não existem e não existirão vencedores e vencidos. Todos perderão. Somos
todos perdedores. A segunda certeza é de que a guerra contra o terror é real,
seja em sua essência ou em suas consequências. A terceira certeza é de que não
existe romantismo na guerra e que dilemas morais só existem na prática.
Já as dúvidas são diversas e as
exponho sumariamente para contrapor tudo que até agora se discutiu e para
estimular uma posterior reflexão individual mais profunda. A primeira dúvida
que me angustia e que pareceu margear toda a discussão sobre a morte de Osama
Bin Laden, terrorismo e fanatismo religioso, mas que nunca é apresentada de forma
clara, é sobre se existe relativismo cultural. E se sim, será que realmente devemos
respeitá-lo? Quando falamos que Israel e os Estados Unidos invadem nações,
desrespeitam a soberania nacional de muitos e ofendem culturas milenares que
deveriam ser preservadas, assumimos que o relativismo cultural é aceitável?
Será isso mesmo?
Durante o meu mestrado em Lisboa a
aceitação do relativismo cultural foi muito discutida, pois diversos árabes
muçulmanos que imigravam para lá mantinham sua cultura tribal de ablação
(retirada, mutilação) do clitóris feminino. E aí? Eles têm o direito de exercer
sua cultura, sua tradição, manter seus costumes e serem respeitados em suas
escolhas? Pode o Estado civilizado português permitir isso? A mulher vítima e
os agressores (pai, mãe e marido) concordam com a prática, pois arraigados em
sua cultura. Alguns traços religiosos ainda são adicionados a tal prática para
perpetuar e fundamentar sua realização. E aí? Crime ou cultura? Devemos ou não
impor nossa cultura dita civilizada a esses povos? Temos esta obrigação ou não?
A aceitação do fanatismo religioso islâmico passa por esta reflexão e a crítica
aos Estados Unidos da América também.
Vejam o caso da França, onde muito
se discutiu sobre o direito das mulheres muçulmanas usarem os seus véus (o
hijab/jalabib) em escolas públicas. O hijab pode, mas a burka não? Por que um e
outro não? Por que um nos choca mais e outro menos, por que até certo ponto
devemos respeitar a cultura e a partir de um momento devemos nos impor? Quem
diz qual é esse momento? Até que ponto uma cultura diferente nos ofende? Por
que a fé deve ser mostrada, escancarada, esfregada em nossas caras? Por que não
se pratica simplesmente uma fé silenciosa, privada, interior? Por que mostrar
para os outros no que se acredita, por que invadir um lugar que não é mais seu?
Sou suspeito para tratar deste tema, pois o ministro da educação francês que
proibiu o uso do véu em escolas públicas foi Luc Ferry, uma das mentes mais
brilhantes da atualidade, um
defensor do humanismo secular. No entanto, observe-se bem, não se pode confundir Islã com fanatismo religioso. Os fanáticos desrespeitam toda história, tradição e conhecimento da grande religião de Alá.
Quando levamos tais reflexões para
o plano internacional o problema não é diminuído. Os países que têm condições
de agir têm obrigação de agir ou devem sempre respeitar a soberania de um povo
e de seu governo? A ONU e os Estados Unidos respeitaram a soberania e as
fronteiras de Ruanda em 1994 e a maioria hutu massacrou a minoria tutsi, um dos
maiores e mais terríveis genocídios que a humanidade já viu. O filme “Hotel
Ruanda” revela bem o problema daqueles que podem agir e não agem porque têm
argumentos de respeito a conceitos acadêmicos construídos longe da vida e da
morte. Difícil depois de ver o filme não culpar os Estados Unidos e a ONU por
não terem invadido o país e salvo vidas, matando alguns se preciso fosse.
Mas aí está o grande problema de
uma discussão como esta: dilemas morais só existem na prática. Não sabemos o
que fazer até o momento em que estamos diante de um caso em que só nós podemos
escolher. E esta escolha não é entre o certo e o errado, mas apenas entre o mal
menor. Sim! Muitas vezes temos que escolher entre o menor mal, pois o “certo”
(entendido este como o imperativo categórico de Kant) não nos é ofertado como
opção. Atirar ou não atirar? Matar ou deixar que mate? Abater uma aeronave cheia
de inocentes ou permitir que ela seja utilizada como arma para matar milhares?
Dilemas morais ampliados em conflitos internacionais, mas que na segurança
pública também se vivenciam com certa frequência. Acho que eu preservaria as
vidas dos inocentes, eu diminuiria os danos, buscaria o mal menor, arriscaria
errar, mas não me permitiria a inércia e a passividade.
Jack Bauer, personagem ficcional do
seriado 24 horas, diversas vezes nos confrontou com seus dilemas morais,
afirmando vez por outra que o maior problema das pessoas comuns é que elas
querem viver em tranquilidade, paz e segurança; mas não querem sujar as mãos ou
saber como se conquistou o seu grande bem e sua liberdade.
E aí? A lógica utilitarista nos
serve? Podemos realmente discutir essa lógica quando se fala em um conflito de
deveres? É justo com a pessoa que se encontra em uma situação limite exigirmos
dela uma conduta de um super-herói, sendo que provavelmente não teríamos força
para assim agir? A resposta simplista da moral não nos serve nesses momentos.
Não há justiça quando afastada de tudo que é a vida, quando se condena com uma
moral simplista, fechada e irreal. Será que os médicos alemães que matavam aos
poucos algumas crianças para impedir que Hitler os retirasse da função e
matasse todas de uma só vez podem ser culpados? O certo talvez não seja tão
claro nesses momentos e a omissão seja a mais grave escolha que um ser humano
pode ter. Não desejo a ninguém viver uma situação de conflito de deveres, mas
me parece inaceitável a pura e simples moral eclesiástica e acadêmica “do
pronto” em um mundo fácil de viver. Muitos são santos em um local onde o pecado
e as tentações não podem entrar.
Quando o direito penal deve agir,
culpar e punir? Quando podemos e devemos desculpar? Quando devemos compreender
e aceitar que não existem vencedores e perdedores, mas que a omissão é
inaceitável? Em que momento deixamos de ser protetores do bem para nos
tornarmos parceiros do mal? Quando conseguimos voltar? E se esses momentos
forem suficientes para nos transformar? Não tenho certeza de nada, mas me
parece que aqueles que poupam os maus condenam os bons e se formos todos boas
ovelhas, morreremos nas mãos dos lobos.
Difícil demais uma única e
definitiva resposta, mas se aproximarmos os questionamentos acima trazidos para
a moral individual e nossas possíveis escolhas, concluiremos que não saberíamos
o que fazer e o que escolher. Dilemas morais realmente só existem na prática,
no mundo real, e se não quisermos escolher devemos rezar para que Deus nunca
nos coloque diante de opções como essas. Por outro lado, condenar uma ação de
quem infelizmente lá esteve é cruel demais. Devemos sempre ponderar nossos
julgamentos.
Que
bom se todos os homens fossem bondosos, que bom se conseguíssemos levar
ensinamentos de paz e gentileza para todos os cantos do mundo. Mas isso talvez
demore algum tempo e pessoas morrem enquanto isso. Podemos nos omitir ou
podemos estar lá para melhor decidir. Podemos apenas criticar ou estar lá para
ponderar. Os que decidem hoje, um dia pensaram na liberdade para o mundo, em um
mundo melhor, em uma terra livre. Talvez ainda pensem.
Talvez
em uma análise macro seja tudo apenas interesse econômico e essa influência
seja forte demais para mudar o posicionamento dos homens, mas são sempre esses
que decidem no final. Melhoremos os homens, mas enquanto isso - até o objetivo
melhor e final - pessoas ainda morrerão e medidas intermediárias devem ser
adotadas.
Não
defendo os Estados Unidos nem Israel cegamente, não me iludo que eles não
guardam interesses indizíveis; não acredito que os Estados do mundo sejam
sempre puros em suas ações, mas não me iludo que existisse a possibilidade real
de fazer o direito em uma situação de encontro com Osama Bin Laden, um fanático
religioso que buscava impor sua fé ao mundo, matando quantos fossem necessários.
Que bom que ele não conseguirá o seu intento. Não foram os Estados Unidos que
colocaram as palavras em sua boca, ainda que talvez o mundo moldado ao jeito
americano de pensar tenha o transformado no que ele era. Ainda assim prefiro o
jeito americano para poder criticá-lo.
Por
fim, encerro esta breve divagação dividida, este pensar em voz alta, com
algumas ponderações: 1ª) que a guerra só guarda alguma beleza - seja moral,
ideal ou teórica - quando distante e com total desconhecimento de causa, pois
não há opção de atirar ou não atirar quando você está diante do perigo. É puxar
o gatilho para não morrer, ainda que seja duro demais para quando estamos
distante do dilema moral do autor do fato. 2ª) Eu gostaria que todos fossem
bons, gostaria que todos os homens buscassem a evolução pessoal, gostaria que
as massas ignorantes não tivessem força para extinguir o pequeno grupo que as
conduz, mas isso dificilmente existirá. Sim, os povos mais inteligentes
conduzem os mais atrasados, mas avalio se estes, justamente por serem mais
atrasados e inconscientes ignorantes, às vezes não se utilizarão de meios
perigosos e desleais, cabendo aos justos se protegerem e se anteciparem. Sim,
precisamos de cães pastores para nos protegerem dos maus e encontrarmos a
bondade. Aqueles que podem agir têm obrigação de agir, pois ainda me parece que
quem poupa o mau, condena o bom. Às vezes, todavia, é difícil demais dizer quem
é o mau. Ainda assim, a omissão é a única saída que não temos. E o cuidado com
o caminho de nossas defesas e pensamentos ditos críticos é a única que temos.
Muitas questões colocadas, Dr. Rafael, de fato não encontram respostas diretas e fáceis, porém, a reflexão por si só já viabiliza um caminho. Com certeza há um ponto que o Sr. colocou que é fundamental, qual seja, a omissão não é a saída. Disso tenho convicção.
ResponderExcluirAtenciosamente,
Tiago Ferreira.
Seu texto me fez lembrar algumas vezes do filme "Ameaça Terrorista". Filme que nos coloca frente a frente com a questão dos dilemas morais que vc cita. Se não assistiu, sugiro. Tem no netflix. Abraço!!
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