sábado, 20 de abril de 2013

Rafael Vianna é um dos ganhadores do Concurso Literário Nacional


Neste mês de abril, Rafael Vianna ganhou o Prêmio Literário Nacional, da Associação Nacional de Escritores, por ter escrito um dos 50 contos selecionados para fazer parte do livro "ANE 50 Anos - Contos", coletânea organizada para comemorar os 50 anos da Associação e para divulgar os contos vencedores do Concurso Literário Nacional.
Rafael Vianna escreveu o conto "A angústia da Palavra que não sabe por que vive", o qual foi escolhido entre os aproximadamente 300 contos inscritos no concurso literário.
 

 

Os contos foram analisados, julgados e selecionados pela comissão formada por Guido Heleno, João Carlos Taveira e Rosângela Vieira Rocha.
Segue o conto:
A ANGÚSTIA DA PALAVRA QUE NÃO SABE POR QUE VIVE
Era apenas uma palavra, mas, como todas, tinha medo de morrer. Por medo, não pensava sobre o fim ou a razão de ser usada, mas existia ou tentava, levando um dia após o outro. Como outras, não entendia, mas sofria e suportava. Viver, para ela, era apenas estar no mundo.
Era uma simples funcionária durante o dia, exercendo seu trabalho chato com as pessoas. Mentia sem graça sobre tudo. À noite, ela sai para ferir, matar, sujar as mãos. Sentia-se mais viva à noite. Seus impulsos aumentavam e ela não entendia o porquê. Certa noite, ela já não existia.
Quando os policiais chegaram, seu corpo desnudo repousava ao lado da cama. Eram três jovens altos e fortes. Vestiam jaquetas pretas de couro. Um deles, ao aproximar-se da cama, encontrou a carta, a confissão.
O quarto era apertado e pouco iluminado, o que dificultava a leitura do que estava escrito. Existia apenas a cama de madeira velha, uma luminária mal cuidada e um armário. O chão de assoalho tinha furos e rangia com os passos. Os três não estranhavam a cena, mas queriam ler a carta.
Tem dias que não sei o que fazer, para onde ir. Sirvo para tudo, para ferir, para matar. Vago pelo mundo servindo a todos, como o ar, imperceptível e imprescindível. A angústia me corrói. Acho que todos são assim, mas também acho que sofro um pouco mais.
Não consigo parar de matar. Todo dia morro um pouco, tiro um pouco de minha vida. Não vejo razão para existir. Às vezes acho que construo; outras tantas, apenas que destruo. Não consigo mais matar. Sou autora de tantas mortes que nem sei por onde começar.
Comecei quando pequena, por brincadeira, não entendendo direito o que era o silêncio. Acho que até hoje não entendo. Era apenas uma discussão com meu irmão e um de seus amigos. Estávamos no sítio de meu avô, passando as férias de verão. Éramos apenas nós três no campo, em um dia ensolarado. Tudo corria bem até que ele falou que gostaria de brincar em meu balanço. Não aceitei aquilo. O balanço era apenas meu. Não podia emprestar para ninguém. Ele e meu irmão insistiram, mas eu não podia aceitar que brincasse em meu balanço. Veio o empurrão, os golpes com uma pedra e o silêncio. Meu irmão nunca mais falou comigo. Seu amigo nunca mais foi encontrado.
E foram tantos outros. Como pude, como posso, como vivo? Na adolescência feri e silenciei muitos, mas foram apenas coisas bobas, sem muita importância. Tudo isso sempre me consumiu, mas nunca consegui parar. Na verdade, não sei por que vivo. Nunca pude controlar minha vontade. Ela surgia durante o dia, mas eu a satisfazia durante a noite.
Algumas mortes marcaram-me. Era jovem ainda, bonita, falante. Queria apenas sair com alguns amigos e meus pais não concordaram. Tinha conhecido aquelas pessoas na faculdade e todos iriam viajar em um final de semana para a praia. Ouvi um “não” de meus pais. Eu era muito jovem, não conhecia direito aquelas pessoas, era perigoso, o que os outros iriam pensar e falar. Palavras. Como sempre, muitas palavras.
Tentei controlar meus instintos, não pensar meus pensamentos, não falar. No entanto, a noite chegou e durante o jantar os silenciei. Estávamos apenas nós três em casa. Meu irmão há muito morava na Europa e pouco ligava ou nos visitava. Estudava literatura e letras por lá. Talvez para tentar me entender, já que nunca superou a morte do amigo na infância.
Meu pai foi o primeiro. Era forte, já com os cabelos grisalhos, uma barba bem aparada e um ar sério demais para esta vida. Usava óculos e fazia questão do terno aos domingos. Começou com seu discurso e eu não esperei. Apenas um golpe no pescoço foi o suficiente. Ele tentou buscar o ar, mas percebi que não suportaria. Golpe profundo demais para sobreviver.
Minha mãe nem se mexeu. Morreu na mesa mesmo. Utilizei a mesma faca para ela. Depois pedi desculpas, mas já era muito tarde. O silêncio já obtivera a vitória sobre mim mais uma vez. Sumi com os corpos. Morávamos em um lugar isolado, sem vizinhos próximos. Até hoje meus queridos pais continuam enterrados perto do rio, embaixo de um belo pé de jacarandá.
Tenho certeza que os policiais nunca acreditaram em minha história da briga e da viagem repentina, mas também nunca encontraram os corpos. Daquele dia em diante vivi sozinha. Matando de vez em quando, aleatoriamente os que cruzavam meu caminho.
O policial mais antigo não acreditou em quem estava morta em sua frente. Era ela, a Palavra. A menina rica que tantas vezes ele buscou, investigou, interrogou. Nunca tinha conseguido nenhuma prova contra ela, mas sempre soube que era a responsável por tanta dor em seu condado.
Não entendia exatamente por qual motivo ela estava em um hotel no centro da cidade, frequentado por prostitutas, traficantes e pequenos delinquentes. O dono do lugar falou que ela chegou na noite anterior e não saiu do quarto durante o dia, permanecendo sozinha o tempo todo. Os três continuaram a ler a carta.
Não sei realmente por que vivo. Conheci tantas pessoas, passei por tantas bocas, frequentei tantos lugares. Estive em todas as partes, viajei o mundo todo, conheci vários sentidos. Sirvo para tudo, o que não faz nenhum sentido. Como posso matar, ferir e construir? Como posso ser amiga de poetas, de filósofos, de pregadores e matar? Como posso conviver com assassinos, prostitutas, deliquentes e amar? Como alguém pode servir à verdade e à mentira, para a vida e para morte, ao ódio e ao amor? Não entendo por que vivo.
Conheci Pessoa e Assis em outros tempos. Também servi a Saramago, Meireles e Lobato. Sempre servi a todos, famosos e desconhecidos. No entanto, de verdade, não sei exatamente por que vivo, para que vivo, por quem vivo. Sei que existo em um mundo sem sentido e que, hoje, não quero mais viver. Deixo todos, para todos, sem um todo. Hoje, o silêncio me venceu.
Os três, assim como todas as pessoas, não gostavam de ler cartas de despedidas, não gostavam de perceber suas fraquezas, não queriam constatar os seus fracassos. Ela não conseguiria agir sozinha. Eram muitos crimes insolúveis, muitas mortes, muitos corpos. Existiam outras palavras, as quais a carta tentava encobrir. Mas isso não importava de verdade.
Recolheram o corpo, guardaram a carta, encobriram as palavras. Naquele momento as palavras eram apenas um corpo. Decidiram que tudo estava solucionado. Não importava se outras também mataram. Agora, vários crimes estavam solucionados. Nada mais importava. Os três policiais voltaram para suas casas, para seus mundos, para suas famílias.
Outras palavras sempre existirão, com muitas formas, muitos jeitos, muitas mortes, muitas vidas. Palavras celebram a vida e a morte, conduzem ao centro da alma, confundem. Os policiais decidiram tão somente voltar para casa. O trabalho estava feito, concluído. A Palavra conheceu seu fim, entendeu a sua vida, explicou a de tantos outros. Ela nunca morrerá, ainda que tenha vivido sem saber, ainda que não tenha existido, ainda que não tenha construído. Talvez um dia entenda o que é viver, construir, existir. Um dia, quem sabe, volte para ser um meio para a paz.

2 comentários:

  1. Simplesmente maravilhoso!
    Que inveja! Não a inveja tristeza nem a inveja pecado, mas a inveja admiração, orgulho, fascínio. Eu, profissional das letras, gostaria de ter falado da PALAVRA com tamanha competência, talento e sensibilidade.

    Parabéns, Rafael, por fazer da PALAVRA sua parceira, sua arma, seu troféu.

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  2. Apaixonante. . .fazer da Palavra sua heroína ou vilã, personagem viva e atuante. Li por acaso, buscando um texto de Álvares de Azevedo, mas o acaso nem existe. . . Parabéns Rafael!

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